30/08/2011

Vias Públicas e Conflitos Sociais

Hoje é dia de discutirmos o espaço público brasileiro, particularmente, o trânsito nas grandes cidades. Será possível que os transporte coletivos e os transportes limpos (skates, bicicletas, patinetes, patins ou mesmo andar a pé) ocupem maior espaço no trânsito? É possível reduzirmos a presença dos carros nas vias públicas? Qual a lógica de ocupação das vias públicas no Brasil? Como planejar mudanças no uso dos transportes visando equalizar economia e sustentabilidade?
O debate será no mini-auditório da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), a partir das 18h (iniciando-se com a exibição do documentário "Sociedade do Automóvel"). O debate será mediado pela Thayla Fernandes, estudante de Direito (FDV) e Ciências Sociais (UFES), e contará com a presença do sociólogo Andre Michelato (UFES) e do presidente da federeção estadual de ciclismo, Aloyr Gomes (FESC).
Àqueles que quiserem se inteirar mais sobre o tema, há uma pasta com textos sobre o assunto na xerox da FDV.
Até lá!

29/08/2011

Dormente

Quem me tem por inteligente
Não sabe o quanto sou demente,
Dormente.
E não sinto nada,
Não sei de nada.
Mas sou convincente.
É deprimente!

28/08/2011

Querer fazer só fazer querer


Faço
O que quero.
O que quero,
Faço
Só.
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Imagem: Audrey Hepburn on a bike.

27/08/2011

Música de Protesto Brasileira: outro jeito de fazer política no Brasil

Ao escrever um texto sobre música brasileira posso criar em você a expectativa de conhecer mais sobre estética musical; ou identificar erros e acertos das letras e poesias dos principais artistas nacionais; ou de ler um texto histórico, ou nostálgico, sobre músicos brasileiros. Nada disso estará presente nesse artigo. O objetivo central aqui é refletir sobre a tão falada apatia política da sociedade brasileira, estabelecendo o campo artístico-cultural, particularmente o da música, como um espaço eleito pelos artistas para realização de atividade política numa sociedade em que 1) o espaço adequado para isso, o espaço público, foi constituído como um espaço para poucos e 2) o estado (com letra minúscula mesmo) foi, historicamente, o principal inibidor das atividades políticas. Pretendo demonstrar que são históricos e culturais os motivos que levaram o campo artístico-cultural brasileiro a ser também um espaço de contestação política.

Quando os músicos brasileiros resolveram contestar o autoritarismo de estado dos governos militares, usando e abusando das dubiedades nas letras, não estavam inovando tanto: as manifestações culturais e artísticas brasileiras já eram conhecidas por sua capacidade crítica em relação à própria realidade política e social do Brasil. Das poesias dos Inconfidentes ao Hip-Hop de São Paulo, passando pelos contos de Lima Barreto, pela temática social das pinturas de Portinari, pelo Samba ou o Cinema Novo, a cultura brasileira apropriou-se desde muito cedo da arena política. E essa é uma característica até bastante democrática do campo cultural brasileiro: de movimentos artístico-culturais elitizados como os dos jovens de classe média alta carioca da Bossa Nova a movimentos populares como o Funk, a denúncia social e a contestação política estiveram sempre em pauta nas produções culturais brasileiras. Mas por que será que o campo cultural brasileiro incorporou o espaço da política?

A sociedade brasileira é tida como uma sociedade politicamente apática, que não participa do processo histórico, que vê a banda passar. Essa idéia faz parte do imaginário social dos brasileiros, fazendo com que você se pergunte os motivos pelos quais nós brasileiros suportamos o que deveria ser insuportável: desigualdades sociais, corrupções, criminalidades, autoritarismos de estado...

Na virada do século XIX para o século XX o senador Aristides Lobo publicou um artigo em que dizia que os brasileiros assistiram bestializados à proclamação da República. O que o senador publicara não estava em discordância com o pensamento da época, e que se mantém vivo ainda hoje, sobre a indolência política dos brasileiros. Desde o século XIX a sociedade brasileira era analisada como uma sociedade com um baixo nível de solidariedade social, o que provocava o chamado “atraso brasileiro”. A discussão dos intelectuais visando superar o “atraso brasileiro” e constituir uma sociedade moderna encontrou diferentes explicações para o pretenso insolidarismo social, e que provocava apatia política. Entre as principais causas destacava-se o problema do longo período de escravidão, o determinismo geográfico e climático ou a genética e mistura de raças. Por fatores diferentes, para essas explicações a sociedade brasileira estava fadada ao “atraso”.

No entanto, apesar da disseminação de análises que questionavam a capacidade de mobilização política dos brasileiros, a história demonstrava a existência de movimentos contestatórios, entre os quais os movimentos insurrecionais do período monárquico (Conjuração Baiana, Sabinada, Balaiada etc.) e movimentos contestatórios do período republicano, que vão de movimentos messiânicos (Canudos e Contestado) a movimentos de lutas por direitos (Anarco-Sindicalismo, Ligas Camponesas, guerrilhas rurais e urbanas, Novo Sindicalismo etc.). Se há evidências históricas da existência de movimentos políticos de contestação da ordem, não se pode dizer que o brasileiro seja tão politicamente apático assim. Embora, de fato, os brasileiros, ainda hoje, resistam à ocupação dos espaços públicos para contestação política. Então, o que produziu esse retraimento do brasileiro em relação à arena política? E mais, se houve uma restrição da arena política como espaço de contestação, pra onde se dirigiu tal força contestatória? Que espaço ela ocupou?

Uma coisa em comum nos movimentos de contestação política no Brasil é o seu fim: quase todos foram dizimados ou reprimidos com extrema violência por parte do estado. Por parte de um estado que precisava se mostrar forte para a manutenção da ordem e, conseqüentemente, para a superação do “atraso”, o que está em consonância com o lema estampado na bandeira do Brasil. Quem observa as fotos da morte de Lampião e seus cangaceiros, ou de Antonio Conselheiro, ou sabe dos relatos da morte de Tiradentes, percebe a presença desse estado forte que pune com rigor para dar exemplo de que movimentos contestatórios não são tolerados. E aqui chego aonde pretendia, afirmar que o campo artístico-cultural foi utilizado como área de escape para o exercício de uma atividade política contestatória que não podia se realizar no espaço público. Como “para bom entendedor meia palavra basta”, a sociedade brasileira aprendeu muito cedo que a arena política foi constituída como um espaço artificial no Brasil, que nunca foi para o exercício da discordância, da democracia, mas apenas como espaço de ratificação das decisões políticas dos grupos dominantes. Quer dizer, nossa apatia política se realiza especificamente na ocupação do espaço público, o que não quer dizer que não se conteste a ordem estabelecida por outras vias, dentre os quais a música.

Quero marcar a idéia de que a música brasileira foi um dos espaços do campo artístico-cultural ocupados para o exercício da política. O que os compositores brasileiros fizeram de modo velado e inteligente durante os diferentes governos militares para contestar a ordem estabelecida não era nenhuma novidade, já fazia parte da tradição política brasileira adotar a produção cultural como campo de ação política, pra tentar fugir dos rigores do estado sancionador. O meu argumento aqui é que a excessiva presença do estado na vida da sociedade brasileira inibe a ação política no espaço público, deslocando historicamente essa ação para o campo artístico-cultural. Isso significa, na prática, um estado politicamente disciplinador/assistencialista e uma sociedade politicamente indisciplinada/carente. E esses dois aspectos se retroalimentam num ciclo vicioso, mantendo viva a apatia política.

A MPB inspirou as gerações que viveram nas décadas de 1960 e 70, alimentando a esperança na redemocratização política do país. A música de protesto pode inspirar a sociedade a encontrar sua força política de luta por direitos e auxiliar na conscientização sobre a própria realidade social. Mas só isso não basta, é preciso seguir a canção e tomar as ruas, ocupar esse espaço que deveria ser destinado também à política. Mas se essa ocupação do espaço público incomodar você, meu argumento pode estar certo: temos uma dificuldade (histórico-cultural) enorme de valorizar os movimentos contestatórios e isso mantém viva a “apatia política” e dificulta a consolidação da nossa democracia. Mas a contestação sempre estará aí, pra quem quiser ouvir.
.......
Imagem: Capa de um dos discos de Nara Leão. O musical Opinião (1964), com Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia), João do Valle e Zé Ketti foi a primeira contestação de músicos brasileiros à ditadura militar.
Artigo publicado hoje no caderno Pensar, do jornal A Gazeta, de Vitória/ES.

26/08/2011

Patas e puãs

Sou leão feroz e ferido;
Caranguejo sutil e senil:
Tenho patas pesadas,
Enormes pegadas
E puãs ágeis,
Frágeis.
Tenho presas e presas.
E as arrasto por aí,
Junto a mim.
E cuido sem cuidado
Até sufocar.
E devoro pra diminiuir sua dor.
Porque não suporto ver sofrer!
Mas sem querer faço sofrer.
E durmo muitos dias abraçado
Com seu corpo dilacerado.
Só pra digerir.
E quando acordo,
Volto pra casa.
E fico até meu instinto mandar
Sair.

25/08/2011

Liberdade para enganar quem quiser ser

Sou um criador de casos,
De causos,
Descasos.
É minha liberdade criativa,
Auto-destrutiva.
Liberdade é enganação!

24/08/2011

Condição intelectual (ou nômade)

Essa minha condição,
É mera condição
De ser,
Intelectual vazio
E cheio de si.
Caminhante,
Buscando chegar
Em nenhum lugar.
Se alguém pode ser assim,
Que seja eu
Eu mesmo.
Ou melhor,
Nós,
Que usamos a razão contra nós.
E nos desvencilhamos da segurança que há na moral
Em nome de uma tal de liberdade.
E voltamos a vagar,
A caçar e...
A experimentar.
Ah, experimentar!...
É o melhor dessa condição!
Que delícia achar o gozo na prova,
Na lambida,
Na chibata.
Andar na corda
Sem dar corda,
Sem condão de salvação,
Sem rede de proteção.
Uso a rede

Para matar
E comer.
Para encontrar você.

Das misérias da alma se constroem as virtudes da vida:
Segurança,
Prova da razão instrumental de ser...
Temente.
E por temer cria,
O que enxerga;
Crê
No que se vê.
Mas nunca se vê,
Porque está imobilizado no mirante de deus.
Pequeno mesmo,
Como se vê.
Mas pra gente se ver
É preciso caminhar,
Sentir a brisa no bolso
E o vento na cara
E na coragem
De se perder,
Que é o preço que se paga
Quando se é...
Nômade.
Essa minha condição
É mera condição,
Sem nenhuma condição
De ser.
Agora, preciso ir.

23/08/2011

O fim só não chega pra quem parte

Eis uma cena comovente;
E deprimente:
Vejo você deitada,
De olhos cerrados,
Boca atoalhada
E narinas algodoadas.
Nem parece com o que você foi!
Você se foi.
Já não tenho medo da morte,
De ser acolhido pela terra fria,
De beijar você.
Até um dia!
__________________________________________________
Em homenagem a Amy Winehouse (14/09/1983-23/07/2011).
Imagem: "Dead girl" (1910), de Egon Schiele.

22/08/2011

Egolatria

Eu só
Me amo
A mim
Mesmo
O tempo todo.
O mesmo.
Adoro-me
Amar.
E quem não me ama,
Não (re)conheço,
Azar!
***********************************************************
Não é um tempo de egoísmo. É tempo de idolatria e contemplação. De mim mesmo e do mesmo de mim. Apaixonadamente.

21/08/2011

Degradar é natural

A natureza é assim:
selvagem.
Eu também.
Minha natureza está,
naturalmente,
dispersa,
sem pressa.
Caço pra comer,
pra viver.
E degrado minha natureza,
sua beleza,
com toda certeza
de que tem de ser assim.
Pior pra mim.
Minha natureza morta,
esse espaço vazio,
que nunca é preenchido,
parece feito pra mim,
feito por mim,
com toda sutileza
e maldade:
vou secando os rios
e molhando os olhos;
vou queimando a mata
e o mato;
vou buscando a carne
onde ela está,
em qualqer lugar.
E sigo meu instinto,
sigo intestino,
cruel.
Cruel é a ordem!
Já a desordem liberta
o mal que há em mim
e marca meu rastro
de sangue
e azeite;
e marca meu rosto
de sulcos
e óleo de peroba.
Essa minha cara de pau
é de madeira de demolição,
mas o pau na cara
é desejo e obssessão.
Derrubo mitos
e florestas,
destruindo meu (nosso)
habitat,
nossa cadeia produtiva.
E quando tudo acabar,
vou comer terra
pra compensar
o mal que fiz aqui.
E vou dispersar por aí,
em algumas memórias,
em algumas lembranças.
Vou virar móvel
mobilizado por você,
mesmo sem querer,
pra seu prazer.
E a floresta não mais existirá,
nem eu.
Só restos de nós
insepultos por aí.
Pra quem quiser encontrar,
quem puder reciclar.
Renovar.
A vida perece,
ela merece.

20/08/2011

Noite sem fim

Sou seu inferno,
Seu inverno.
Sua noite de chuva
E choro.
Sua dor intensa,
Saudade imensa.
E nem gosto de você;
Nem cuido de você!
Sou sua noite cheia de vazios
E tormentos.
E quando a noite passa
O dia não:
O sol não me esquenta
Como você.
E volto pra acabar
Com você.

19/08/2011

Seu erro

Você está errado
Quando diz que sou explorado.
A exploração
É também uma opção.
E não há explorador
Que não seja explorado
E que não fique magoado
Com a sua condição
De acusador.
Então, é melhor fechar os olhos.
E aproveitar.

18/08/2011

Catando e contando

Preciso ir às ruas,
sair às catas.
Até encher o saco
com restos e latas.
Pra vender
e viver.
Viver não é sobre-
viver, humano sob
humano é sub-
humano.
E vivo nisso até morrer.
Mas morrer não é fácil.
É tátil,
é tático,
prático.
E pratico todo dia.
Sem fim nenhum.
Só praticar.
Só pra ticar
cada dia:
cada dia um
de cada
vez.
E isso ninguém me dá,
ninguém se dá.
Então...
Preciso ir à ruas...
Mais uma vez,
porque isso não tenho.
Nem voz.

17/08/2011

Faces e farsas

Tenho muitas faces,
Muitas farsas.
E você pode escolher a sua.
E viver.

16/08/2011

Metade!

sou metade
inteiramente dividida:
metade de mim está aqui.
a outra, nem aí.
metade mais uma
(duas, três...)
inteira mente.
demente.
mente inteira-
-mente partida.

sou metade.
meio sem graça;
graças ao meio.
um meio (de meter medo)
de matar.
medonho!

sou metade.
metade atrás de você,
metade à frente,
metade metido.
metendo,
mentindo,
temendo...

sou metade.
meta-metade.
sem meta.
só mera mentira.
só meramente.
somente...
metade!

15/08/2011

Tenho que continuar aqui?!

Quando a violência parte,
A parte eu,
Parte-se!

Mas como partir
Sem também levar parte disso?
E quem tem parte nisso
Ama partido.

Aparta-me!
__________________________
É preciso se colocar no lugar e também apanhar. E também chorar. E ouvir gritos duros, palavras mudas e batidas dissonantes.

14/08/2011

Afogamento

Sinto todas as suas alfinetas,
Em cada palavra.
E no silêncio.
Nas virgulas fora do lugar
E em todo lugar.
E me sinto como um atleta que vai ao fundo sem conseguir voltar.
E morre antes de chegar.
Cheio de si
E de água.
Afogado a um palmo da superfície:
Sem ar e cheio de esperança.
Mas de que adianta?!

13/08/2011

O agricultor e os "dotô" (ou Pedra no sapato!)

A história que vou contar agora é a história de um agricultor e de toda uma sociedade: a história de um problema social percebido individualmente. A história pública de uma sociedade quase secreta que se foi.
Antônio Faustino da Pedra Rocha Silva, também conhecido como Pedra, aprendeu desde muito cedo a lida do homem do campo: capinar, tirar leite de vaca, produzir queijos, amansar cavalos, conduzir rebanhos, plantar, colher, construir cercas, firmar mourões, consertar instrumentos de trabalho, construir casas, acatar ordens... e uma série de outras incontáveis atividades que um trabalhador rural pobre precisa aprender desde cedo para sobreviver em ambiente tão hostil. Ele nem lembra com quantos anos começou a trabalhar, mas afirma com convicção que nunca foi criança. Afinal, não podia se dar ao luxo de não ajudar os pais nas atividades diárias, mesmo tendo seis irmãos. "Trabalho é o que não faltava lá em casa!", diz ele com certo ar de resignação.
Antônio recebeu o apelido de Pedra porque nasceu no povoado de Pedra do Anta/MG, no dia em que o lugarejo se emancipou, 30/12/1962. Ele era o sexto filho de uma família de sete irmãos e sua família já estava estabelecida ali na Zona da Mata mineira desde meados do século XIX: seus antepassados foram parar ali impulsionados pela expansão da lavoura cafeeira. A maior visibilidade social que a família teve foi no início do século XX, quando um tio-avô de Antônio virou notícia ao matar um boiadeiro a facadas após uma briga na porta de um armazém, em Viçosa/MG.
Com 17 anos Pedra foi para a região de Uberlândia trabalhar na colheita da cana-de-açucar, onde ficou por três meses antes de retornar a seu municipio natal para trabalhar nas terras da família Bueno, patrões de sua família há pelo menos cinco gerações. Quer dizer, Pedra só saiu uma vez de seu lugar de origem, pra colher cana e beber cana.
Pedra teve três filhos com Maria Tertuliana, sua primeira esposa, e uma filha com Beatriz, sua atual companheira. Embora Rhameluje Dias garanta que a menina Vitória, também seja filha dele. Pedra ficou orgulhoso quando seu filho primogênito entrou numa faculdade de direito e projetou uma ascensão social familiar para quando seu filho se formasse. E é essa história que quero contar agora.
No ano de 2005 o filho mais velho do patrão foi para a capital fazer faculdade de direito. Como o patrão foi amigo de infância de Pedra, e como o filho do patrão fora amigo de infância do filho de Pedra (eles têm a mesma idade), o patrão resolveu pagar uma faculdade de direito para o filho de Pedra, Nicanor Penna Silva, o Nico. Como viver e estudar na capital era muito dispendioso e como Nico trabalhava na fazenda dos Bueno, o patrão pagou uma faculdade de direito numa cidade próxima (Juiz de Fora). Nico passou seis anos na faculdade: foi reprovado em algumas disciplinas, mas nunca atrasou a mensalidade, e, enfim, conseguiu terminar.
Durante o tempo da faculdade o patrão ainda dava uma ajuda de custo ao rapaz que permitia que ele fizesse um lanche por dia durante o tempo em que estivesse na faculdade. O transporte e o material didático ficava a cargo de Nico, que trabalhava na fazenda dos Bueno como encarregado pelo resfriamento e empacotamento dos cortes de carnes bovinas que abasteciam os supermercados de toda região e partes dos mercados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Nico ganhava um salário mínimo, mas nunca teve carteira assinada.
A mensalidade do filho do patrão era 70% mais cara que a de Nico. O filho do patrão se formou em direito numa das melhores faculdades de direito do país, no ano passado. Nico se formou esse ano. Assim que se formou o filho do patrão foi aprovado no Exame de Ordem e começou a militar na advocacia, tornando-se sócio de um tio que já tinha um grande escritório. Quando Nico se formou, Pedra se emocionou por ter um filho "dotô". Dias depois que seu filho se formara, Pedra entendeu que seu filho não era advogado porque ainda não havia passado no Exame de Ordem. Foi uma decepção!
Primeiro ele achou que seu filho era "mais burro" que o filho do patrão, porque não conseguira passar na bendita prova da OAB. Depois achou que o problema fosse da faculdade, que não ensinou direito, e chegou a ir até lá pra tirar satisfação com o coordenador do curso. Muito pacientemente o coordenador explicou que a faculdade tinha um aproveitamento baixo na aprovação do Exame de Ordem e que isso se devia ao fato de que a faculdade ainda era nova. Pedra, ainda não convencido, e frustrado com a situação do filho (e da própria família), escreveu uma carta para o presidente da OAB nacional, a que tive acesso meio sem querer durante umas pesquisas sobre corporativismo na advocacia brasileira, e que transcrevo abaixo na íntegra:
sinhô presidenti da ordi dus adevogados do Brasiu,

to inscrevendo esa carta mezmo não sabendo inscrevê direito pra protestá porque o tal inzame di ordi escangalhô minha vida. sô nacido e criado na roça e nunca pensei qui um dia tivessi um filho dotô. E continuo não tendo. não intendo.
Meu fio Nico feiz faculdade pra adevogado mais não póde adevogar. qui abisurdo! não sei si o sinhô sabe, mais se Nico não for adevogado naõ adianta nda ele ter estudado. E vamu continuá no meismo lugá di sempre. Vamus continuá cendo isplorado, como sempre fomo. não muda nada. e o sinhô axa certu?
Por causa dissu exiju o fim deça palhaçada de inzami di ordi qui só servi pra fazê tudo ficá inguau. quando vamu podê acabá com essa difereça toda qui inziste no brasiu? ou voçes qui são dotô axam certu qui nossos filhos vai pra faculdadi dando um duro danado e gastanndu um dineirão e naõ consegui trabalhá di adevogados? Ou voçes qui são dotô naõ queren qe os filho dos pobri sejam dotô também?
To di sacu xeio de tanta isploraçaum! odeio a ordi. odeio continuá inguau.
peçu o fin desse inzami já, por uma questã de justiça!
asinado,
Antono Pedra.

Essa história de um sujeito simples é a história de muitas gerações: a revolta de Pedra carrega a revolta de muitas vidas assoladas pela desigualdade de oportunidades no Brasil. O agricultor queria um filho "dotô", uma vida melhor. E achava que podia, achava que merecia. Mas descobriu na prática que tinha uma marca de nascença, que estava fadado a cansar. A resignar. O agricultor foi uma pedra no sapato da OAB. E agora, o que se pode fazer?
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Há um processo judicial (que deverá ser julgado essa semana pelo STF) questionando a constitucionalidade do Exame de Ordem.

12/08/2011

Andrelina e Mario

Andrelina e Mario não tinham nada a ver. Ele era artista e ela ativista. Ele tinha toda a qualidade estética e ela, a ética. O problema é que se conheceram, se misturaram e se perderam. Já não havia mais propriedade essencial de cada um: gostavam das mesmas coisas e amavam fazer o outro gostar. Viviam cheios de alegrias. E lutas. Cheios do melhor e do pior de cada um por si só. Não podia ser melhor! Mas um dia, depois de outra luta, Mario se foi. E nunca mais voltou. E quem ficou nunca mais se encontrou. Até hoje Andrelina espera a volta de Mario: ela só quer devolver a ele o que ela guardou. Mas ela já não está só.
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Estima-se que as ditaduras militares na Argentina (1976-1983) tenham produzido 30 mil desaparecidos políticos.

11/08/2011

Libertad!

Preciso de sua saída
Pra pensar na vida.
Pra não pensar em nada
E começar a agir,
A submergir.

Vai me soltando
Que vou me enrolando.
Deixa-me ir
E vou cair.
Mas e daí?
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Imagem: Tela de Paul Klee.

10/08/2011

O fim

Se Jesus voltar,
Vou adorar!
Mas se não,
Que fim terá?
O fim será,
Dúvidas não há.

09/08/2011

Encontros e desencantos

Encontro-me num lugar
Onde não me encontro.
Esse desencontro
É desencanto.
E conto os dias,
Dia a dia,
Sem sair do lugar,
De sair por aí.

08/08/2011

¬¤ʋɔʋᴚɏ!

Abro o vidro de azeitonas pretas
E bebo todo o líquido.
Adoro maltratá-las,
Deixá-las a seco.

Abro a garrafa de cerveja holandesa
E despejo tudo no ralo.
Depois encho d'água até em cima
E coloco uma flor pra você.

Abro a janela da frente
E penduro uma toalha verde no parapeito.
Quando não tenho uma,
Penduro duas.

Abro a porta de casa até o canto
E espero entrar alguma pessoa nova.
Mas só os ratos deixam rastros.
E como o queijo da ratoeira antes que acabe tudo.

Abro a boca pra falar poesias,
Mas o bafo é maior.
E vendo os olhos pra não cair.
Continuo parado no mesmo lugar.

Abro a mão pra você cair
E vejo que tenho calos.
Mas não sei usar a mão pra bater.
Então, afago meu ego.

Sei que você não compreendeu nada que disse.
Também não sei voar,
Mas as loucuras são ótimos pontos de interrogação.
E nunca deixo os chinelos na porta.
Imagem: Pintura de Paul Klee
(¬¤ʋɔʋᴚɏ)

07/08/2011

Fugidio

Tento fugir pra viver,
Mesmo sem querer,
Sem entender porquê,
Sem você.

06/08/2011

É melhor não acordar o sonâmbulo!

Deixo você dormir pra você mesmo
Pensar,
Pra desacelerar
E descartar o que lhe faz mal sem você saber.
E eu sei,
Eu o sou.

05/08/2011

Baleia


A baleia vai ao fundo,
Com todo o seu peso,
Va-ga-ro-sa-men-te;
Intensamente
Enfrentando o atrito:
Re-sis-ten-te-men-te.
E vai resistindo
Enquanto canta
O som caótico
E lamentoso
Que atrai os iguais,
Que afasta e distrai
Os predadores de si.
A imponência do seu nado,
Suave e forte,
E a beleza de seu porte,
Estão presentes aqui.
...........................................
E ainda tem a cachorra Baleia, uma das principais personagens da literatura brasileira, que era a contraposição da humanidade na bestialidade que a seca produz ao nordestino em Vidas Secas. Ao final da vida, Baleia, tendo contraído raiva, "perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo". É a humanização final desse animal que era parte da família dos retirantes. Intenso. Profundo.

04/08/2011

Sinceramente

Sinceramente,
Já enganei gente de mais.
(E de menos!)
Já enganei demais.
Tanto que nem aguento espiar.
Mas se há um modo de expiar
É saber que em todo tempo que enganei alguém,
Me enganei também,
Que fui de mim o maior predador,
Fui o maior perdedor,
O ganha-dor.
Sinceramente,
Continuo enganador.
Só não engano a dor!

03/08/2011

Zig-zag-bye!

Do dia para a noite você se derrete
E me quer.
Da noite para o dia você se revolta.
E me sufoca.
E sigo seu rebolado,
Todo desconcertado.
Melhor eu ir.

02/08/2011

Verdades inventadas

Sou um mentiroso.
E isso é verdade!
Invento mentiras para acreditar,
Pra escapar.
Acredito em verdades inventadas,
Imaginadas.
E não pago nada por isso;
Pago caro por isso!
Quando pego uma mentira,
Não quero largar.
E ela também não me deixa
Mentir,
É a verdade manipulada
Para o meu prazer.
+-+-+-+-+-+-+-+-+-+-+-+-+-
Ia escrever outra coisa. Acabei escrevendo isso. Acho que foi mais uma invenção pra disfarçar a dor da verdade, da saudade. Minha melhor mentira foi você!
Na imagem, uma obra do genial Pollock!

01/08/2011

Sociologia poética

Queria fazer uma sociologia que se aproximasse da poesia, uma sociologia das loucuras, dos amores e das mortes: das loucuras amorosas fatais. Queria trabalhar só os dados. E demonstrar como os dados são jogados, negociados. Mas isso daria um trabalhão: seria preciso trabalhar incessantemente nesse texto, por muitos dias, muitas noites, muitas vidas. E no fim, provavelmente, não haveria conclusões. E queimaria as anotações. E guardaria tudo comigo, como já faço. Ficaria em meu abrigo.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Imagem: Pintura de Paul Klee.