13/08/2011

O agricultor e os "dotô" (ou Pedra no sapato!)

A história que vou contar agora é a história de um agricultor e de toda uma sociedade: a história de um problema social percebido individualmente. A história pública de uma sociedade quase secreta que se foi.
Antônio Faustino da Pedra Rocha Silva, também conhecido como Pedra, aprendeu desde muito cedo a lida do homem do campo: capinar, tirar leite de vaca, produzir queijos, amansar cavalos, conduzir rebanhos, plantar, colher, construir cercas, firmar mourões, consertar instrumentos de trabalho, construir casas, acatar ordens... e uma série de outras incontáveis atividades que um trabalhador rural pobre precisa aprender desde cedo para sobreviver em ambiente tão hostil. Ele nem lembra com quantos anos começou a trabalhar, mas afirma com convicção que nunca foi criança. Afinal, não podia se dar ao luxo de não ajudar os pais nas atividades diárias, mesmo tendo seis irmãos. "Trabalho é o que não faltava lá em casa!", diz ele com certo ar de resignação.
Antônio recebeu o apelido de Pedra porque nasceu no povoado de Pedra do Anta/MG, no dia em que o lugarejo se emancipou, 30/12/1962. Ele era o sexto filho de uma família de sete irmãos e sua família já estava estabelecida ali na Zona da Mata mineira desde meados do século XIX: seus antepassados foram parar ali impulsionados pela expansão da lavoura cafeeira. A maior visibilidade social que a família teve foi no início do século XX, quando um tio-avô de Antônio virou notícia ao matar um boiadeiro a facadas após uma briga na porta de um armazém, em Viçosa/MG.
Com 17 anos Pedra foi para a região de Uberlândia trabalhar na colheita da cana-de-açucar, onde ficou por três meses antes de retornar a seu municipio natal para trabalhar nas terras da família Bueno, patrões de sua família há pelo menos cinco gerações. Quer dizer, Pedra só saiu uma vez de seu lugar de origem, pra colher cana e beber cana.
Pedra teve três filhos com Maria Tertuliana, sua primeira esposa, e uma filha com Beatriz, sua atual companheira. Embora Rhameluje Dias garanta que a menina Vitória, também seja filha dele. Pedra ficou orgulhoso quando seu filho primogênito entrou numa faculdade de direito e projetou uma ascensão social familiar para quando seu filho se formasse. E é essa história que quero contar agora.
No ano de 2005 o filho mais velho do patrão foi para a capital fazer faculdade de direito. Como o patrão foi amigo de infância de Pedra, e como o filho do patrão fora amigo de infância do filho de Pedra (eles têm a mesma idade), o patrão resolveu pagar uma faculdade de direito para o filho de Pedra, Nicanor Penna Silva, o Nico. Como viver e estudar na capital era muito dispendioso e como Nico trabalhava na fazenda dos Bueno, o patrão pagou uma faculdade de direito numa cidade próxima (Juiz de Fora). Nico passou seis anos na faculdade: foi reprovado em algumas disciplinas, mas nunca atrasou a mensalidade, e, enfim, conseguiu terminar.
Durante o tempo da faculdade o patrão ainda dava uma ajuda de custo ao rapaz que permitia que ele fizesse um lanche por dia durante o tempo em que estivesse na faculdade. O transporte e o material didático ficava a cargo de Nico, que trabalhava na fazenda dos Bueno como encarregado pelo resfriamento e empacotamento dos cortes de carnes bovinas que abasteciam os supermercados de toda região e partes dos mercados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Nico ganhava um salário mínimo, mas nunca teve carteira assinada.
A mensalidade do filho do patrão era 70% mais cara que a de Nico. O filho do patrão se formou em direito numa das melhores faculdades de direito do país, no ano passado. Nico se formou esse ano. Assim que se formou o filho do patrão foi aprovado no Exame de Ordem e começou a militar na advocacia, tornando-se sócio de um tio que já tinha um grande escritório. Quando Nico se formou, Pedra se emocionou por ter um filho "dotô". Dias depois que seu filho se formara, Pedra entendeu que seu filho não era advogado porque ainda não havia passado no Exame de Ordem. Foi uma decepção!
Primeiro ele achou que seu filho era "mais burro" que o filho do patrão, porque não conseguira passar na bendita prova da OAB. Depois achou que o problema fosse da faculdade, que não ensinou direito, e chegou a ir até lá pra tirar satisfação com o coordenador do curso. Muito pacientemente o coordenador explicou que a faculdade tinha um aproveitamento baixo na aprovação do Exame de Ordem e que isso se devia ao fato de que a faculdade ainda era nova. Pedra, ainda não convencido, e frustrado com a situação do filho (e da própria família), escreveu uma carta para o presidente da OAB nacional, a que tive acesso meio sem querer durante umas pesquisas sobre corporativismo na advocacia brasileira, e que transcrevo abaixo na íntegra:
sinhô presidenti da ordi dus adevogados do Brasiu,

to inscrevendo esa carta mezmo não sabendo inscrevê direito pra protestá porque o tal inzame di ordi escangalhô minha vida. sô nacido e criado na roça e nunca pensei qui um dia tivessi um filho dotô. E continuo não tendo. não intendo.
Meu fio Nico feiz faculdade pra adevogado mais não póde adevogar. qui abisurdo! não sei si o sinhô sabe, mais se Nico não for adevogado naõ adianta nda ele ter estudado. E vamu continuá no meismo lugá di sempre. Vamus continuá cendo isplorado, como sempre fomo. não muda nada. e o sinhô axa certu?
Por causa dissu exiju o fim deça palhaçada de inzami di ordi qui só servi pra fazê tudo ficá inguau. quando vamu podê acabá com essa difereça toda qui inziste no brasiu? ou voçes qui são dotô axam certu qui nossos filhos vai pra faculdadi dando um duro danado e gastanndu um dineirão e naõ consegui trabalhá di adevogados? Ou voçes qui são dotô naõ queren qe os filho dos pobri sejam dotô também?
To di sacu xeio de tanta isploraçaum! odeio a ordi. odeio continuá inguau.
peçu o fin desse inzami já, por uma questã de justiça!
asinado,
Antono Pedra.

Essa história de um sujeito simples é a história de muitas gerações: a revolta de Pedra carrega a revolta de muitas vidas assoladas pela desigualdade de oportunidades no Brasil. O agricultor queria um filho "dotô", uma vida melhor. E achava que podia, achava que merecia. Mas descobriu na prática que tinha uma marca de nascença, que estava fadado a cansar. A resignar. O agricultor foi uma pedra no sapato da OAB. E agora, o que se pode fazer?
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Há um processo judicial (que deverá ser julgado essa semana pelo STF) questionando a constitucionalidade do Exame de Ordem.