02/07/2011

Pequena história repetida de uma gente numérica

Viveu uma vida torpe: cheio de si, de aventuras e desilusões. Viveu sem pretensões: comendo, bebendo e dormindo. Passando os dias como se folheam livros vagabundos: com pressa e às vezes sem ler nenhuma linha. E olha que gostava de ler, de viver. Mas nem sempre tinha tempo, nem sempre tinha vontade. E a coragem que tinha pra enfrentar a lida ainda era menor que a vontade de abrir os olhos. Preferia ficar deitado, alienado... Esperando que sua morte recompensasse seus queridos (apesar de não querer ninguém) e que também recebesse seu quinhão, no além. Era uma pessoa simples, mas com todas as complexidades da vida de qualquer um. Trabalhou tanto por nada. Batalhou tanto mas cansou (antes do tempo), envelheceu (antes do tempo) e morreu (antes do tempo). Ante o tempo em que viveu. Mas enquanto viveu, sobreviveu: ombros arreados, sorrisos escassos e preguiça constante. Não viveu nem mais um instante. Morto por não chegar. Por não chegar a lugar nenhum, por nunca conquistar. Recebeu o prêmio de sua condição de classe: condicionado a resistir por prazer; a desistir por dever. Virou mais um. Entre tantos iguais. Mas a viúva, enfim, recebeu o prêmio do seguro de vida dele, o que garantiu mais um mês de fartura: uma cesta de alimentos, bisnagas todos os dias, dois palmos de fumo de rolo, uma garrafa de cachaça, um crédito de mil reais para empréstimo pessoal pré-aprovado e um vidro de veneno para rato.