04/01/2011

Com carinho, ao mestre Paulinho

Depois de um post explicando a razão da presença constante da finitude em meus textos, nada melhor do que lembrar a presença da melancolia na obra de alguns artistas brasileiros. Penso até que a dor da melancolia é pre-requisito para uma boa produção poética: só quem sente na carne toca na alma. Entre tantos artistas que são reconhecidos como melancólicos quero render uma homenagem especial ao mestre e filósofo Paulinho da Viola. E nem vou falar de Cartola e Gonzaguinha.
O principal motivo pelo qual há tanta melancolia no samba e, de uma maneira geral, na cultura popular brasileira, é que as classes populares encarnam o dilema de viver numa sociedade autoritária e sofrem na pele a desigualdade social. Com algumas exceções, há um constante tom de melancolia/lamento e resignação nas composições produzidas por artistas oriundos das classes baixas. É uma melancolia que transfere para um plano metafísico, extra-mundano, ou para o futuro a solução dos problemas enfrentados na existência (desde problemas amorosos a problemas políticos e econômicos). Há uma idealização de uma justiça que será realizada num futuro distante (ou num plano espiritual), punindo o mal que os pobres têm sofrido cotidianamente no Brasil.
Por esse motivo (porque a justiça será feita um dia), frequentemente há também uma resignição quanto à situação vivida, na certeza de que as opressões sofridas pelas classes populares não ficarão impunes e de que as perdas/mortes/frustrações experimentadas fazem parte da condição de ser pobre, como se o sofrimento fosse natural para os pobres, cabendo-lhes suportar a dor convictos de que um dia serão vingados. Aí a felicidade deixa de ser uma coisa a ser perseguida/buscada e passa a perseguir os infelizes sofredores desse mundo. É como se a felicidade batesse à porta, recompensando as classes populares por suportar em vida tanta tristeza, opressão e perda. Gonzaguinha tem uma música chamada "A felicidade bate à sua porta" e o próprio Paulinho da Viola canta essa idéia em "Perder e Ganhar".
A melancolia por apenas sobreviver é comum na produção cultural das classes populares, como o próprio Norbert Elias vai ressaltar num de seus textos quando analisa o surgimento (sociogênese) do romantismo. É preciso lembrar ainda que, no caso brasileiro, o samba nasce num espaço social (favela) composto de pessoas oriundas de diversas partes do território nacional, que trazem consigo suas experiências e culturas. Esse espaço de diversidade cultural é o cenário do sofrimento, das lutas, dos dramas de cada dia. É o lugar da saudade da família (e da terra natal) que ficou pra trás, da violência sofrida, do desprovimento material e da esperança de dar certo, do sonho no eldorado. Se há um termo que poderia resumir/expressar o sentimento presente na cultura popular, esse termo é distância ou separação. É uma distância/separação geracional, econômica, cultural, afetiva... Essa distância/separação é produto de uma sociedade desigual como a nossa. Nesse aspecto a cultura popular brasileira tira leite de pedra, extrai poesia da dor. Por isso, não vejo a melancolia só como tristeza, mas também como resistência e esperança, porque é isso que está sendo gestado na cultura popular brasileira, mudança social.
Fiz toda essa análise só pra render uma singela homenagem poética ao mestre Paulinho. Aí vai:
A melancolia rasgada,
Chorada,
Em forma de cantares,
Em forma de pesares.
Pesa na alma a saudade.
Sem nenhuma vaidade.
Só lamento,
A dor do desalento.
O amor impossível de se dar;
Impossível de se acabar.
E a condição é uma só:
Aguardar.
E guardar o que passou.
Imaginar que não acabou.
Resistir com esperança.
Trabalhar com perseverança.
Sabendo que um dia a expiação virá.
E que se fez o melhor que se podia,
Que a perda está no dia a dia
Constante,
Deprimente.
Mas quando a alegria voltar,
Quando ela voltar,
O sorriso retornará,
De canto a canto,
Com todo seu encanto.
Segue essa Viola!
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Vão aqui dois singelos fragmentos de músicas de Paulinho da Viola que expressam bem essa idealização da mulher amada e a melancolia por não poder realizar o idealizado, seja pela distância geográfica (ela mora no Recife) ou social (socialmente condenado, reprovado). Para quem nunca ouviu nada de Paulinho da Viola, sugiro que comece ouvindo o maravilhoso disco Paulinho da Viola, de 1971 (capa abaixo). Aliás, os dois discos lançados naquele ano são muito bons. Mas o que me refiro, é impecável! Do início ao fim. Olha eu falando de fim novamente!
Para um amor no Recife (Paulinho da Viola)
A razão porque mando um sorriso
E não corro
É que andei levando a vida
Quase morto
Quero fechar a ferida
Quero estancar o sangue
E sepultar bem longe
O que restou da camisa
Colorida que cobria
Minha dor
Meu amor eu não me esqueço
Não se esqueça por favor
Que voltarei depressa
Tão logo a noite acabe
Tão logo este tempo passe
Para beijar você


Pressentimento (Paulinho da Viola)
Nosso amor não dura nada
Mas há de dar um poema
Que transformarei num samba
Quando a gente se deixar
Quando a gente se deixar
Nosso amor foi condenado
A breve amor nada mais
Eu tive um pressentimento
No nosso último beijo
Por isso faço um poema
Antes dele se acabar
E ponho uma melodia
Transformo em samba vulgar
Minha dor e meu lamento
Papel que solto no ar
Ai amor que sofrimento
Ver meu sonho se acabar