30/03/2010

Ed não acredita mais que possa alcançar o sol

A jornada de um dia parece insuficiente para tudo que Ed precisa e pretende realizar. E ele não sabe o que fazer. Sai de casa todo dia antes do sol raiar, e ele nem chega a brilhar. Mas ele não tem casa, nem beleza, nem memória, nem história... Entra cabisbaixo na fila do coletivo, aparentemente sem motivo. Aperta-se com outros de sua raça num onibus urbano com destino à praça. Sua raça é sua classe; ele não tem classe. Cochila entre um solavanco e outro, segurando o fardo. Farto daquela rotina, cansado de sobreviver. Mas não há o que fazer! Já chega ao destino suado e cansado, parecendo atordoado. Desce apressado como se estivesse atrasado. Mas ele nem tem relógio. Ed olha para os lados, com cuidado. E só aí desce a trouxa. E a coisa corre frouxa. Abre o plástico e espalha no chão, vigiando o ladrão, que pra ele usa fardão. Passa a gritar, como se estivesse a implorar: "olhem pra mim, eu estou aqui!". Mas os passos se apressam e os olhos se afastam. E poucos param. E quase ninguém sabe que ele existe. A polícia sabe. E ordena: páre! Ed se afasta, temendo a porrada. Ele corre atrás. E a polícia também. Ele não alcança seu lugar ao sol. Os homens o alcançam e o levam para o xadrez. Mas como não é um bom jogador, não vê o sol, mais uma vez. Mas ele não está só. Há outros derrotados atrás das grades. Está tudo lotado. E isso reforça sua descrença na possibilidade de alcançar o sol. A não ser que o veja quadrado. Naquele dia Ed não se apertou no coletivo na volta pra casa. Mas não tem problema, o coletivo não sente sua falta. E ele não tem casa. Ele se apertou com outros setenta, na sua nova casa. E apertou um baseado para esquecer que não existe, que seu presente é um chiste.
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Você duvida que a vida de Ed seja real, que haja outros numa condição igual? É o mal da cegueira de enxergar o social como natural. Não seja trivial, look around!

29/03/2010

Sei lá

As nossas experiências
Não são de ninguém.
Mas não há criatividade que resista
A uma falta de vontade.
Já vi de tudo:
De fada a bruxa;
De sereia a bicho-papão.
Mas o que se espera, não.

Sei de tudo um pouco;
Sei de nada não.
Na presunção de saber
Sempre enfio os pés pelas mãos.
Mas a cabeça...
Continua fora do lugar.
E deve assim continuar.
Mas a gente supera a falta
E o excesso nunca é em vão.
A vida vai caminhando,
O cheiro se acabando
E a memória se apagando.
Aí está a graça
Para quem faz tudo na raça.
Para quem acha que um caso
Pode não ser um acaso.
Para quem vê as experiências
Como um tempo passado,
Que já foi presente
E hoje está ausente;
Que se esquece um dia,
Como um filme que não se viu.

Atravessamos pontes,
Mas não chegamos a lugar nenhum.
O resultado é essa distância
Que nos separa:
Pra lá,
E pra cá.
Andamos em círculos
E não descobrimos os propósitos.
Talvez não tenha mesmo;
Talvez seja a esmo.
Mas bem que tentei dar sentido
Ao incompreendido.
E não podem me acusar
De não querer.
Não devemos esquecer
O risco que corremos todos os dias,
As marcas no corpo
E a saudade do outro.
Mas temos que circular,
Para não congelar.
Certos de que valeu a pena,
Que a vida não é como no cinema;
De que a sorte pode estar
Em outro lugar.

Eu escrevo à vontade pois
Só você me entende.
Poderia insistir e ir além,
Mas pra quê prolongar
Quando se está aquém?
Mas uma coisa tem de ser dita:
O risco da morte é o risco da vida,
E é aí que se renova a esperança.
E ponto final.
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Não vai chorar, hein? Só faltava essa! Agora chega. AFPRS é do contrário. Fui!

28/03/2010

O fim e o começo (e vice-versa)

O fim e o começo.
O começo e o fim.
O começo do fim
É o fim do começo.
E pelo jeito, o que não se inicia
Não aprisiona como se temia.
Como é bom encerrar o que se pretendia
Sem esquecer o que se queria!
E como o fim é libertador,
Declaro que tudo acabou.
Melhor, que nem começou.
Somos livres a partir do fim;
Livres para por fim;
Para reinventar
Ou recomeçar
Pelo fim.
Enfim,
Fim!

27/03/2010

Pirão

Eu tinha a farinha
E você o caldo bom.
Dava pra fazer o pirão.
Mas a farinha caiu no chão.
O que sobrou juntei com a mão,
Mas vi que seu caldo já não era bom.

Tudo na vida tem alguma validade;
Nem tudo se faz por comodidade.
Talvez um dia eu faça um pirão.
Mas com você eu não faço não!
Um dia você
E eu não!
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Quem não gosta de pirão que me desculpe, mas não sabe o que é bom! Mas pra fazer um bom pirão, o peixe tem de estar fresquinho. E sobre o caldo em que foi cozido o peixe fresco vai se adicionando aos poucos a farinha torrada, sem deixar de realizar os movimentos constantes e circulares com a colher de pau, para não empelotar (ou embolotar, ou encaroçar). Não pode botar muita farinha pra não virar farofa. É só um pouquinho de farinha para engrossar o caldo, mantendo a consistência mole e apetitosa. O pirão é a última coisa que se faz antes de servir a refeição. E se deve comer bem quente com algumas gotas de pimenta para esquentar ainda mais, pra fazer suar. Só entende de pirão quem conhece o mar. E quem gosta de suar. Quando você comer um pirão, não tenho dúvidas, vai lembrar de mim. Eu sempre gostei (e gostarei) de pirão, esse maravilhoso prato de origem indígena.

26/03/2010

Selvagem!

Você é selvagem!
Seus olhos penetrantes
Só não são mais marcantes
Que seus lábios instigantes.
E com essa boca
Você me devora.

Você fica aí escondida
Fingindo não me ver,
Sem piscar,
Nem respirar.
Você é fera!
E vive na espera.
Você é mansa!
(Só os mansos esperam)
Não é pra qualquer um.

Você é fera que traz no corpo
Os suplícios do outro.
Suplicando por um outro,
Suplicando por mim.
Você é fera que traz no corpo
As marcas do sol.

E quando me mata,
Fica aí deitada,
Sem fazer nada,
Amansada,
Saciada,
Digerindo sua comida.
Nessa hora,
A borboleta pousa na sua marca,
Esperando o momento de voar
Pra outro lugar.
(Ou o mesmo lugar)
E me levar.
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(daqui a um ano...)

25/03/2010

Uma história possível

Essa é só a imaginação de uma história possível. Mais do que isso, de uma história desejada. Desejada por mim, pelas famílias dos desaparecidos políticos e, quem sabe, por você.
Durante a ditadura militar muitas pessoas foram perdidas em decorrência da violência de estado. Uma dessas pessoas foi Vandick Reidner, que militava no PC do B e estava engajado na Guerrilha do Araguaia. Sumiu em 1974, aos 25 anos. Era um jovem idealista que tinha ido para o Araguaia, em 1971, com sua esposa.
Pegaram um ônibus de Salvador para Belém apenas com a roupa do corpo, algum dinheiro no bolso e pequenos objetos pessoais. Passaram duas semanas numa hospedaria próximo à rodoviária de Belém, aguardando contato dos camaradas para seguirem para o campo. Ganharam duas enxadas e roupas de boia-fria, subiram na carroceria de um caminhão e seguiram, junto com outros "boias-frias", para o sul do Pará. Quando chegaram ao campo ouviram um grito firme de comando e atenderam sem saber onde iam parar: "Desce, passa por baixo dessa cerca e caminha pra frente em direção ao pôr do sol sem olhar pra trás! Vocês receberão instruções no caminho." Caminharam em silêncio por mais de três horas sem parar pra nada. Confiantes de que estavam cada vez mais próximos de seus destinos, de que de suas mãos viriam uma nova sociedade brasileira.
Lá pelas tantas, encontraram uma velhinha sentada num tronco de árvore com uma garrafa d'água. Como a sede era muita, a água não foi suficiente, mas foi. De repente saiu um homem forte de trás de uma moita que falou em meia voz: "vão até aquele curral, troquem esses trapos pelas roupas que estão lá e façam uma fila aqui!" Cumpriram o que fora dito e caminharam juntos, ainda em silêncio, até o acampamento que se erguia no meio do nada. No centro de tudo que importava pra eles. Ali já havia outras pessoas. Viveram ali durante três anos cultivando, vigiando e estudando. Divididos entre alegrias e tensões. Até que começaram as batalhas com as tropas do governo. Foram muitas mortes. De ambos os lados.
No dia 17 (ou 18) de janeiro de 1974 um grupo de guerrilheiros de aproximadamente oitenta pessoas, percebendo o avanço (e o poder bélico) dos militares, entraram em covas rasas cavadas por eles mesmos e foram cobertos por terra e mato pelos próprios colegas, com as narinas fechadas e com um canudo de bambu na boca que ficava discretamente pra fora da terra, ajudando a manutenção da vida. Ficaram imóveis ali, ouvindo tiros e gritos dos colegas que optaram por não entrar nas covas e sendo pisados pelos soldados. Aquele era um pelotão de aproximadamente 150 pessoas, dos quais mais ou menos metade entrou nos buracos, não para fugir, mas para não deixar o movimento de resistência ser exterminado. Passaram dois ou três dias ali, inertes, sem comer. Bebendo a água que se acumulava no canudo com o orvalho da madrugada. Depois começaram a sair das covas e a ajudar uns aos outros a sair. Sempre em silêncio. Nem todos saíram. Para alguns aquela foi sua cova final.
Os que saíram abandonaram as armas de fogo e as identidades pessoais, mas não a luta. Misturaram-se aos moradores da região. Viraram boias-frias, trabalharam duro pra reconstruir a vida. Sempre em silêncio sobre o passado. Não podiam voltar pra casa sob pena de morrer e, pior, de colocar em risco a vida dos queridos. Alguns voltaram pra perto da família sem se identificar, observando-a de longe, com lágrimas nos olhos. Foi o caso de Vandick. Alguns estão por aí, com seus cabelos brancos, lutando com os sem-terra, com os sindicatos ou contra uma doença da velhice. Esse é o caso de Vandick. São heróis anônimos de um tempo em que sonhar não era permitido. Fraturados no corpo e na alma por uma violência insana. Saudosos da força da juventude e amantes incondicionais das pessoas perdidas e achadas.
Não conheci o Vandick e não sei se a história foi bem assim. Mas poderia ter sido. Gostaria que fosse. Pode ser.
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O nome de Vandick foi escolhido aleatoriamente durante a leitura do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Poderia ser o nome de qualquer um das centenas de brasileiros que constam da lista de desaparecidos políticos durante a ditadura militar. O objetivo principal desse texto é manter a esperança na abertura dos arquivos militares e no conhecimento do paradeiro desses brasileiros. A manutenção da inacessibilidade aos arquivos militares é a manutenção da própria repressão.

24/03/2010

Adeus, Rogério! Lamento!

Os jornais de hoje no Rio noticiam o assassinato do traficante Rogério Rios Mosqueira, realizado ontem pela polícia daquele estado no Morro de São Carlos. Rogério, mais conhecido como Roupinol, e que também atendia pelos apelidos de Lindão e Macaé, era o chefe de uma das mais temidas organizações criminosas do Brasil, a Amigos dos Amigos (ADA), uma dicidência da facção criminosa Terceiro Comando (TC).
Rogério era considerado um sujeito extremamente violento e obstinado, que não media esforços para conseguir o que queria. Conta-se que ele promovia sessões de torturas com seus inimigos e que se deleitava em faze-los sofrer. Sua ficha criminal conta com mais de uma dezena de homicídios e há depoimentos de que ele mesmo às vezes saía do esconderijo onde vivia com a arma em punho, ameaçando moradores e crianças do local. Há indícios de que teria orquestrado o assassinato do Secretário de Transportes de sua cidade natal, morto com vários tiros numa emboscada no trânsito.
A polícia encontrou apontamentos de movimentação do traficante que permitem chegar à conclusão de que o traficante já faturara a impressionante sifra de aproximadamente R$ 400 milhões com cocaína. Os policiais disseram que ele conseguiu expandir seu mercado consumidor de cocaína aumentando o teor de pureza da droga (o que poderia ser considerado um indicador de qualidade) sem alterar o preço final.
Poderia ficar aqui dando detalhes e mais detalhes das ações criminosas realizadas por Rogério ou a mando dele. E mencionei algumas delas para mostrar que ele não era santo. Mas a intenção aqui é outra. Rogério era meu conterrêneo e contemporâneo. Alguns de meus amigos de infância lembram dele e tentaram me fazer lembrar. Mas não consigo lembrar, embora seu rosto não fosse nada estranho a mim. Dizem que foi criado numa rua próxima onde me criei. Naquele tempo em que a criançada se socializava na rua antes mesmo de ir à escola. Tento refazer as cenas de infância que ainda guardo na mente, recompondo as peladas, os piques e outras brincadeiras que se davam no espaço público. E penso em como pude me criar tão próximo e não conhece-lo; penso em como pude contribuir de alguma maneira para que ele se tornasse o que se tornou; como poderia ter evitado que ele se embrenhasse no crime. Ficam perguntas como essas na minha cabeça e na de outros macaenses. Mas sobretudo na de seus amigos mais chegados e familiares. Acima de todas as perguntas que pairam reflexivamente no ar com a morte de Rogério, quero fazer uma importante afirmativa: a produção do que ele foi se deve a fatores históricos específicos da vida dele e da sociedade de seu convívio; se deve a oportunidades (negadas ou concedidas) para o bem ou para o mal. Mas, sobretudo, é importante lembrar que outros Rogérios virão enquanto não nos ocuparmos seriamente em cuidar de nossas crianças, em aumentar as oportunidades sociais e culturais e reduzir as oportunidades do crime. E aí, quando não cuidamos adequadamente das crianças, depois é cômodo chama-las de um apelido pejorativo. E fazemos isso para aplacar nossa culpa, nossa omissão. Afinal é mais fácil dizer que morreu o traficante Roupinol do que o Rogerinho, que era nosso vizinho. Faz parecer que o crime foi uma escolha só dele. Faz a gente fechar os olhos para a identidade do cidadão que experimentou muito pouco da cidadania. Que virou mais um número, tombado antes mesmo de cair. Lamento!
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E também não podemos deixar de considerar que a morte de Rogério aconteceu no Morro de São Carlos, terra que viu correr o moleque-gênio Gonzaguinha. Mas este teve uma vida bem diferente de Rogério, apesar de terem em comum a experiência com a pobreza e o fim trágico em tempos e circunstâncias distintas. Oportunidade é o diferencial.

23/03/2010

Morena

Tudo mudará, morena.
Um dia,
Qualquer dia,
Quando você chegar
E procurar,
Sem encontrar,
O nosso amor.
Onde estará?

Onde estará
O nosso amor?
Vem encontrar,
Se procurar,
Quando você chegar.
Qualquer dia,
Um dia,
Tudo mudará, morena.

22/03/2010

Dificuldade

Sinto extrema dificuldade em avançar (e em parar).
Redobro minha atenção para não cair.
Penso num modo de entender o percurso;
Vejo que o sentido começa em mim.

21/03/2010

Esse dia

Eu sonhava mais para esse dia.
Eu queria mais nesse dia.
Mas como não se pode ter tudo,
Vou me acostumando com meu mundo.
Vou tratando com carinho quem aqui está
E sentindo prazer no que há.
Isso melhora minha vida.
E percebo que ela melhora,
Quando consigo fazer alguém feliz.

Alegro-me com a clareza do ar.
Mas quando lembro que já desejei as trevas,
Eu me arrependo
E fico feliz por ela não ter vindo.

20/03/2010

Geleira

Quando sobrevôo a geleira
Vejo uma enorme variedade de brancos.
Mas me sinto atraído por um branco prateado.
E desejo descer.
Desejo tocar,
Sentir
E ser sentido.
Mas como a geleira é local inóspito,
Não consigo penetrá-la.
Tenho medo da gangrena
Que pode levar parte de mim.
Temo ficar grudado,
Congelado.
Tenho medo de me tornar
Parte dessa natureza selvagem.
É mais seguro sobrevoar,
Manter distância,
Deixar a geleira para os animais desse habitat.

18/03/2010

Conservadorismo

Há motivos extremos que nos levam a tomar atitudes radicais. Mas como o radicalismo produz mudanças e estas nos assustam, porque nos sentimos seguros em mais do mesmo, tendemos a abandonar as motivações extremadas. Deixamos os extremos para os loucos e heróis. Às vezes são ambos num só. E pelo nosso temor o conservadorismo se reproduz.

17/03/2010

Pirataria da vida

Vejo o avanço da pirataria e comemoro a inssureição dos excluídos. A pirataria é acessível e desejável por todos os lados. Há produtos para todos os bolsos.
Vejo a madame reclamando com irritação de ver sua doméstica usando imitação. A pirataria atende aos piratas. A pirataria agrada seus consumidores; e reforça o poder dos dominadores.
A pirataria é da vida, já que nada se cria. Tudo se copia. E na copiação está a criação. A pirataria é a negação da propriedade privada. Quem diria que a revolução viria de forma tão desorganizada e pelo mercado?!

16/03/2010

Egoísmo é imaturidade

Todo egoísta é um carente.
Todos somos carentes.
A diferença é que o egoísta é tão egoísta
Que se acha o único carente.
E isso é imaturidade.
É por isso que a gente não se entende.
Lamentavelmente.

15/03/2010

Sou um

Sou um Gonzaguinha kierkegaardiano buscando trilhar o caminho com responsabilidade e coragem.
Sou um herói medroso que se esconde atrás de seus super-poderes e se sente confortável assim.
Sou um anarquista moralista que se mostra favorável ao caos mas que pretende ordenar o mundo.
Sou um cangaceiro acostumado às durezas do sertão mas que luta por uma vida mais justa.
Sou um engraçado palhaço de circo que por trás da máscara busca alegria num sorriso alheio.
Sou um carro acelerado e desgovernado indo em direção a um muro de concreto parado.
Sou um idoso aprisionado em corpo de menino desejando que o tempo derrote a casca e liberte a alma.
Sou um condenado à cadeira elétrica esperando que alguém esqueça de pagar a conta de luz.
Sou um personagem intenso saído de um filme de Woody Allen, apaixonado por suas mulheres e suas vidas.
Sou um amante maravilhoso e um amigo desleal, pretendendo que alguém me procure sem eu nada fazer.
Sou um crente piedoso e separado desejando experimentar a carne sem, no entanto, salgar a boca.
Sou um cigano em busca de um lugar seguro onde possa descansar para depois continuar.
Sou um operário infiltrado nas classes abastadas para destruir seus sonhos e reconstruir os nossos.
Sou o que você quiser que eu seja, ou o que achar que sou, construindo pontes com meu querer e achar.
Sou um pra você e um pra mim, mas sou muitos diferentes buscando harmonizar tudo aqui.
Sou um coletivo em mim pensando que é possível viver sem ser assim.

14/03/2010

Sr. AF

Sr. Antônio França (Sr. AF) era um burocrata institucionalizado e infeliz. Bom marido e pai de família, Sr. AF desejava sua independência mas não fazia nada por isso. Sr. AF era um derrotado resignado. Sr. AF realizava a mesma rotina todos os dias, e se sentia seguro nisso: acordava cedo para fazer o café da manhã; tomava café sozinho; ia para o trabalho de carro passando pelas mesmas ruas todos os dias; trabalhava tanto que parecia um burro de carga, mas nem se dava conta disso; almoçava pouco para não ficar sonolento no trabalho, afinal seu apurado senso de responsabilidade não permitia que ele fizesse diferente; levava e pegava os filhos na escola, estacionando o carro sempre no mesmo lugar; acessava seu email duas vezes por dia, mesmo nunca recebendo mensagem importante que valesse a pena manter essas duas consultas diárias; voltava pra casa pelos mesmos caminhos; tomava banho pensando na rotina do dia seguinte; tomava uma lata de cerveja toda noite ouvindo um bom disco de MPB, experimentando a maior liberdade de sua vida; assistia o jornal da noite na TV, dando sempre boa noite aos apresentadores ao final; ajeitava religiosamente seus chinelos ao lado da cama antes de deitar; despedia-se da patroa com um beijo na testa e virava-se para o canto esperando o sono chegar; dormia em média cinco horas por dia.
Mas um dia, quando Sr. AF foi trabalhar com seu terninho azul marinho de sempre, encontrou um tesouro dourado aparentemente perdido. Sr. AF hesitou em dar o bote no tesouro que estava dando sopa por ali, ficara com medo de ser uma armadilha. Afinal, foi muito de repente, meio sem querer, e Sr. AF duvidava de suas capacidades e desconfiava de facilidades e do acaso. Mas como Sr. AF desejava muito se apossar daquela riqueza, não quis pensar muito, olhou bem para os lados e passou a mão. Sr. AF levou a riqueza ainda fechada pra sua casa e deitou-se no chão, aos risos, abraçando seu novo tesouro, imaginando-se um homem rico agora. Depois da euforia inicial, Sr. AF tomou coragem e começou a desembrulhar o tesouro, e descobriu que a riqueza avaliada era muito mais valiosa que imaginou inicialmente. Naquela noite Sr. AF não dormiu, passou o tempo todo namorando seu novo tesouro e imaginando o que faria depois. Pois Sr. AF sempre quis ter riqueza que permitisse realizar seus desejos. No dia seguinte Sr. AF não foi trabalhar, nem deu explicações. No outro dia também não. Estava de bem com a vida e fugindo da prisão. Quando a patroa chegou, não o encontrou. Sr. AF agora estava rico, solto e irresponsável. Um dia, pra piorar sua situação, encontrou um amigo na rua que deu a seguinte sugestão: - "Sr., corra atrás dos seus sonhos e desejos, não deixe as coisas só acontecerem não!" Era o que precisava ouvir para se entregar e curtir.
Passou o tempo e Sr. AF gastou todo o tesouro, ficou sozinho, duro e na mão. É claro que queria mais, mas para Sr. AF foi tudo muito bom. Valeu a pena!

13/03/2010

Balança a cabeça

Balança a cabeça
E vou atrás.
Mexe a cintura
E vou atrás.
Puxo o cabelo
Por trás.

Olho o povo,
Cuido do novo.
Mesmo assim
Eu vou atrás.
E vou por trás.

E você finge que não me vê;
Ou que não pode me ver.
De costas você não me vê.

E você diz que não me quer;
Ou não pode me querer.
De frente você não me quer.

Mas você não sabe o que diz,
Não sabe que sem você sou infeliz.

Nos entendemos
E nos desentendemos.
Mas o que importa é o prazer.
Prazer de ter você
Como você
É assim.

12/03/2010

Culpa

Quando se faz alguma coisa escondida parece que todo mundo vê. Parece que todo mundo viu. Há um peso que se carrega sobre a cabeça, tão visível quanto risível. Mas no momento do erro não há motivos para risos. Um olhar ou uma palavra fora do lugar faz parecer que o erro fora revelado, que alguém viu o deslize, que alguma câmera flagrou a queda. Quando se faz alguma coisa errada tenta-se acobertar, nada declarar, se justificar. Mas a testa revela o que se tenta esconder. A testa vira outdoor. Mas como todos andam muito apressados e descompromissados, e como há muita publicidade por aí, às vezes não se vê. Quando se faz algo não desejado, fica-se logo preocupado com um resultado inesperado. Se o erro cometido foi único, espera-se o tempo passar para apagar. Mas se se deseja comete-lo novamente, espera-se algum tempo passar para repeti-lo, aperfeiçoá-lo. E às vezes nem se espera tanto tempo assim, porque o desejo de errar não pode esperar. Mas isso traz de volta o peso à alma. Círculo vicioso só interrompido pelo flagrante. Que envergonha, humilha e mata. Mas já não se faz mais vergonha na cara como antigamente! E, por isso, aprende-se a conviver com o peso da alma, que se torna peso morto. Sem importância, sem relevância. O preço justo de uma vida intensa e breve. Que de tão breve torna o peso leve.

11/03/2010

Abra o olho!

Abra seu olho!
A vida não é o que parece ser.
Abra seu olho!
Veja a vida como se precisa ver.
Abra seu olho!
Olhe para o lado e passe a perceber.
Abra seu olho!
E deixe a verdade aparecer.
Abra seu olho
E veja,
E seja,
E perceba
E apareça.
Abra seu olho
E não se incomede com o mal que aparecer.
Olhe pela abertura
E veja o real acobertado.
Escancarado,
Encarcerado.
Tão vísivel
De tão real,
De tão mal.
Abra seu olho
E comece a entender
Que não há olho que tudo vê.
Abra seu olho
Para ver o que não se quer ver,
O que sequer vê.
Ninguém deve crer.
Abra seu olho!
E veja o que deve ver,
Não o que se quer ver.
Abra seu olho!
E veja o que deve ser,
Ninguém vive à sua mercê.
E se você vir,
Verá.
E se você verificar,
Constatará.
E será uma decepção.
E terá uma convulsão.
E precisará de um empurrão
Para rever a vida
Pra valer.
Abra seu olho!
Ver é viver.
Ver e rever.
Rever e reviver.
Abra seu olho,
Enquanto a vida não acaba,
Enquanto há tempo para ver.
E pra rever.
E reviver.

10/03/2010

Passarinho verde

Se você tem atitude, me responda: viu passarinho verde? Se não viu, então veja. Isso talvez melhore seu humor. E diminua seu egoísmo.

09/03/2010

Cego guiando cegos

Sigo desorientado com tantas orientações. Vou da ditadura militar argentina ao sistema prisional brasileiro, passando pelas salas de aula, a atividade profissional do magistrado, a defensoria pública paranaense e a linguagem jurídica, entre outros temas que tenho orientado. Sinto-me um cego guiando outros, tamanha distância que os alunos de direito tem da sociologia e antropologia. Sinto-me um cego guiando outros, tamanha falta de tempo para eu estudar e pesquisar. Mas como acho que não sou o único a sofrer com a falta de tempo, sigo conduzindo cegos. E o pior é que tenho a impressão de estar fazendo um bom trabalho. Vejo, pelos resultados, que sei o que estou fazendo. E chego a duas conclusões: 1) de que sou um cego disciplinado/experiente, que aprendeu onde estão as coisas importantes; 2) de que os outros cegos são mais competentes que eu, porque aprendem rápido a caminhar com as próprias pernas. E ambas são verdadeiras. Tenho me esforçado para dar conta de orientar adequadamente os que confiam a mim essa tarefa tão grandiosa. Nem sempre consigo. E aos prejudicados por mim, peço perdão. Mas há os que perseveram. E os resultados tem sido bastante satisfatórios. E essa satisfação é o retorno alcançado ao esforço quase desumano que tenho empreendido de gerir tantas vidas (as dos outros e as minhas). Vamos juntos! Obrigado, meus orientandos!

07/03/2010

Momento especial

Perdemos tanto tempo com nada,
Só para manter a segurança.
Deixamos escapar tantas oportunidades
Por temor do novo (ou da nova).
Mas algumas vivências são marcantes:
Um gesto,
Um olhar,
Um cheiro,
Um apoio,
Um abraço ou
Um amasso.
Ou tudo isso e muito mais.
Tudo isso é muito mais.
.
O que faz um momento ser tão especial?
O que faz uma experiência ser inesquecível?
O que faz um segundo ser eterno?
Você
E eu.

Mas é preciso querer;
É preciso agir.
Vale a pena viver.

Valeu!

06/03/2010

Lista de prioridades para uma vida feliz

Não posso esquecer de algumas coisas importantes. Mas como minha memória não é confiável, é melhor fazer uma lista, mesmo que em ordem aleatória, de todas as coisas fundamentais que me fazem mais feliz e que, portanto, não posso esquecer:
* Camarão grande
* Comprar menos coisas e jogar mais coisas fora
* Tirar o lixo da casa (minha casa é minha vida)
* Ir mais à praia
* Gonzaguinha
* Pesquisar a ditadura militar (e os movimentos de resistência à ditadura)
* Telefonar mais para os amigos
* Trocar de carro para caber todo mundo (que eu amo)
* Lavar o carro
* Comer cuscuz de tapioca com leite condensado
* Comer bombom de coco
* Brincar com as crianças
* Ouvir Jazz deitado no sofá
* Consertar a bicicleta e voltar a pedalar
* Comprar um disco do Dead Kennedys
* Ler os livros do James Joyce
* Assistir mais filmes
* Queijos e vinhos (suaves)
* Olhar para os lados antes de atravessar uma rua
* Torcer pelo mengão
* Viajar mais (conhecer o Reino Unido)
* Organizar/planejar menos as coisas e a vida
Você pode criar a sua própria lista, mas tem de concordar que para realizar a lista de prioridades uma coisa é fundamental:
* Trabalhar menos

05/03/2010

Bombom

Bom mesmo, é bom saber, foi um dia bom como esse, cheio de bons encontros e boas idéias más.
Malvadezas boas e bizarras pensadas para bem realizar o bom planejamento.
Bombom de coco comido inteiro de uma vez só sem parar pra pensar.
Beiços enormes lambusados de bomba de chocolate branco derretido.
Bom é o bombom de beijinho brejeiro com um bocado de baba de moça.
Bela beleza boa de botar a boca e beber o mel.
Bombom bombástico que bomba na batalha beligerante do batente diário.
Bombom, afinal.
Há final, bombom.

04/03/2010

Perícia

Espreme tua cara contra o muro
E observe o caldo que escorre no chão,
Se é que se pode.
Logo, logo as formigas chegarão,
Fazendo barulho e mexendo a mão.

Analisa as marcas deixadas no rumo
E a freada pintada sem rascunho.

Descobre o que já se sabe,
Busca aquilo que não cabe.
E grita alto com toda voz:
O motorista é o algoz!

Realiza o olhar matemático da técnica,
Que não vê nada além de medida,
Que não dimensiona a vida tornada hermética.

Traz os cones e para a vida,
Passa a fita e mata a rima.

Recolhe a morte e
Sela a sorte.
Faz sua parte e
Traz a parte.
Embala a carne e
Joga atrás.
E espera alguém reclamar assaz.

Para o perito,
A vida é o limite da morte.
Ávida morte!
Lânguida sorte.

Para a ciência,
Diminua a distância,
Aproxima a condolência e
Afasta a arrogância.

03/03/2010

Impunidade?

Quando se descobre que a vítima é que morre,
E que se vai longe com um porre,
A vida parece banal
E a justiça ideal.

Mas como não pensar no amanhã?
Mas como não desejar a manhã?
Um novo dia,
Uma nova chance.

Logo um ano passará.
Depois dois, três, cinco e
Se esquecerá.

Mas o sonho não para,
O pesadelo não sara e
E a justiça é rara.

Cada dia é um fardo
Para quem perdeu alguém
E pra quem viu seu amor
Virar ninguém.

Onde está a morte justa?
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Em memória do sofrimento das famílias de Gilmar Rafael Yared e Carlos Murilo de Almeida, assassinados a 190 km/h, em 07/05/09. Já vai fazer um ano e não há o que comemorar.