28/09/2010

Dobrado, amassado e cortado ao meio

Sou um homem dobrado.
Longitudinalmente:
De cima a baixo.
E ao revés.

Tenho tudo em dobro:
Alegria e tristeza;
Inteligência e beleza;
Responsabilidade e safadeza.
Tenho duas cabeças,
Quatro olhos
(E muitos outros sobre mim),
Quatro braços
E quatro pernas:
Sou um octopus.

E essa dobradura de mim
Me faz fininho.
E vou passando em qualquer lugar.
Sem ninguém notar.
Vou me apertando por aí.
Vão me apertando por aí.
Sem ninguém notar.

Mas corto um dobrado:
Vivo amassado.
Dividido.
Temeroso.
Carente.
Só, aguardo.
E sinto a dor da cisão.

E as dobras de mim
Se tocam assim:
Pra lá
E pra cá.
Como um sino a badalar.
E eu mesmo não badalo.
As dobras de mim se tocam simetricamente.
Aproximando o que estava distante.
Distanciando o que estava próximo.
Como um contato entre dois mundos distantes.
O mundo de cá;
E o mundo de lá.
Separados por um fosso quase intransponível
Habitado por caras feias e terrores;
Por egoísmos e odores.
Odores que não saem de mim,
Que me fazem tremer.
Que me fazem querer.

Sinto a tesoura cortando no pontilhado,
Trilhando o lugar marcado.
Com bastante cuidado.
Com muita pressão
E precisão.
Vai passando pelo dobrado
E afastando as duas metades de mim.
Mas não há sangue,
Porque é só um papel.
Um mero papel.
Mais um papel.

Levo o machado na cabeça
E me parto em dois.
E essa partida
Me faz considerar sobre o jogo,
Embora não seja um jogador.
Sobre a luta,
Embora não seja um lutador.
Sobre a lâmina,
Que rasga.
O corte,
Que sangra.
A ferida,
Que fica.

E espero a costura dos dois lados.
O melhor dos dois mundos,
Que estão separados.
Mas sei que a quelóide vai ficar.
E não sei se quero costurar.
Talvez eu queira comer as víceras que saem de mim.
E servi-las a quem quiser um pedaço de mim.
(Se é que alguém quer).
Para saborear o amargo da minh'alma;
Bem devagar, com calma.
Enquanto tudo está fresco;
Enquanto há tempo.

E depois de tudo isso,
É preciso considerar a morte.
É preciso considerar a sorte.
Que sorte a minha:
Encontrei um gato negro sob a escada!
Esse bicho vai arranhar minha estabilidade,
Vai encher a minha cara de instabilidade.
Mas amanhã será outro dia.
Será?
.....................
A tesoura e o machado são dois intrumentos cortantes. No fim das contas ambos os intrumentos produzem a divisão. Acho que prefiro a passionalidade grotesca do corte do machado ao corte racional e linear da tesoura sobre o papel. Gosto mais das feridas abertas espontaneamente, com violência e imprecisão. Penso que por trás do machado há um animal, um apaixonado, um errante como eu. Mas por trás do corte preciso da tesoura pode estar alguém que eu não sei ser: perfeito, frio ou superficial.