25/03/2010

Uma história possível

Essa é só a imaginação de uma história possível. Mais do que isso, de uma história desejada. Desejada por mim, pelas famílias dos desaparecidos políticos e, quem sabe, por você.
Durante a ditadura militar muitas pessoas foram perdidas em decorrência da violência de estado. Uma dessas pessoas foi Vandick Reidner, que militava no PC do B e estava engajado na Guerrilha do Araguaia. Sumiu em 1974, aos 25 anos. Era um jovem idealista que tinha ido para o Araguaia, em 1971, com sua esposa.
Pegaram um ônibus de Salvador para Belém apenas com a roupa do corpo, algum dinheiro no bolso e pequenos objetos pessoais. Passaram duas semanas numa hospedaria próximo à rodoviária de Belém, aguardando contato dos camaradas para seguirem para o campo. Ganharam duas enxadas e roupas de boia-fria, subiram na carroceria de um caminhão e seguiram, junto com outros "boias-frias", para o sul do Pará. Quando chegaram ao campo ouviram um grito firme de comando e atenderam sem saber onde iam parar: "Desce, passa por baixo dessa cerca e caminha pra frente em direção ao pôr do sol sem olhar pra trás! Vocês receberão instruções no caminho." Caminharam em silêncio por mais de três horas sem parar pra nada. Confiantes de que estavam cada vez mais próximos de seus destinos, de que de suas mãos viriam uma nova sociedade brasileira.
Lá pelas tantas, encontraram uma velhinha sentada num tronco de árvore com uma garrafa d'água. Como a sede era muita, a água não foi suficiente, mas foi. De repente saiu um homem forte de trás de uma moita que falou em meia voz: "vão até aquele curral, troquem esses trapos pelas roupas que estão lá e façam uma fila aqui!" Cumpriram o que fora dito e caminharam juntos, ainda em silêncio, até o acampamento que se erguia no meio do nada. No centro de tudo que importava pra eles. Ali já havia outras pessoas. Viveram ali durante três anos cultivando, vigiando e estudando. Divididos entre alegrias e tensões. Até que começaram as batalhas com as tropas do governo. Foram muitas mortes. De ambos os lados.
No dia 17 (ou 18) de janeiro de 1974 um grupo de guerrilheiros de aproximadamente oitenta pessoas, percebendo o avanço (e o poder bélico) dos militares, entraram em covas rasas cavadas por eles mesmos e foram cobertos por terra e mato pelos próprios colegas, com as narinas fechadas e com um canudo de bambu na boca que ficava discretamente pra fora da terra, ajudando a manutenção da vida. Ficaram imóveis ali, ouvindo tiros e gritos dos colegas que optaram por não entrar nas covas e sendo pisados pelos soldados. Aquele era um pelotão de aproximadamente 150 pessoas, dos quais mais ou menos metade entrou nos buracos, não para fugir, mas para não deixar o movimento de resistência ser exterminado. Passaram dois ou três dias ali, inertes, sem comer. Bebendo a água que se acumulava no canudo com o orvalho da madrugada. Depois começaram a sair das covas e a ajudar uns aos outros a sair. Sempre em silêncio. Nem todos saíram. Para alguns aquela foi sua cova final.
Os que saíram abandonaram as armas de fogo e as identidades pessoais, mas não a luta. Misturaram-se aos moradores da região. Viraram boias-frias, trabalharam duro pra reconstruir a vida. Sempre em silêncio sobre o passado. Não podiam voltar pra casa sob pena de morrer e, pior, de colocar em risco a vida dos queridos. Alguns voltaram pra perto da família sem se identificar, observando-a de longe, com lágrimas nos olhos. Foi o caso de Vandick. Alguns estão por aí, com seus cabelos brancos, lutando com os sem-terra, com os sindicatos ou contra uma doença da velhice. Esse é o caso de Vandick. São heróis anônimos de um tempo em que sonhar não era permitido. Fraturados no corpo e na alma por uma violência insana. Saudosos da força da juventude e amantes incondicionais das pessoas perdidas e achadas.
Não conheci o Vandick e não sei se a história foi bem assim. Mas poderia ter sido. Gostaria que fosse. Pode ser.
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O nome de Vandick foi escolhido aleatoriamente durante a leitura do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Poderia ser o nome de qualquer um das centenas de brasileiros que constam da lista de desaparecidos políticos durante a ditadura militar. O objetivo principal desse texto é manter a esperança na abertura dos arquivos militares e no conhecimento do paradeiro desses brasileiros. A manutenção da inacessibilidade aos arquivos militares é a manutenção da própria repressão.